Quando lemos um texto, as
informações não estão todas explicitadas: precisamos, ao longo da leitura, ir
relacionando o que é dito e o que não é dito (está implícito) para a construção
de um sentido possível. Baseando-nos em nosso conhecimento prévio, tanto em
relação ao assunto tratado quanto em relação à compreensão de palavras e
expressões utilizadas pelo autor, vamos desvendando os “segredos” do texto, a
partir de conclusões lógicas e associações. Esse processo denomina-se inferência e o realizamos a todo o
momento, porque o tempo todo buscamos dar significado ao mundo que nos rodeia.
Segundo Koch &
Travaglia (2004: 79), “todo texto
assemelha-se a um iceberg – o que
fica à tona, isto é, o que é explicitado no texto, é apenas uma pequena parte
daquilo que fica submerso, ou seja, implicitado. Compete, portanto, ao receptor
ser capaz de atingir os diversos níveis de implícito, se quiser alcançar uma
compreensão mais profunda do texto que ouve ou lê”.
Veja a seguinte frase:
Sophia, graças a Deus, já não trabalha
mais na universidade; ela agora é massagista especializada em coluna.
Quando
lemos esse exemplo, operamos com inferências bem simples, que são, dentro da
Lógica, premissas:
1)
Sophia
trabalhava na Universidade.
2)
A
pessoa que enuncia, ao exclamar graças a
Deus, aponta para uma situação desfavorável à Sophia na universidade.
3)
Sophia
tinha uma profissão e mudou para outra: é massagista.
4)
A
conclusão que o leitor tira é que a mudança, para Sophia, é positiva.
Verifique que, até chegar
à inferência final, o leitor passou por três inferências, uma delas bem
localizada na expressão graças a Deus.
Assim, podemos ter inferências locais, que se ancoram em índices textuais, e
inferências mais globais, que retomam as inferências anteriores e estabelecem,
para o leitor, uma conclusão, numa direção ou noutra. Ou seja, produzimos
inferências a partir de pistas que o próprio texto oferece, mas a nossa
conclusão sobre o sentido de tais pistas pode estar ancorada em outras
estratégias, como o conhecimento de mundo, por exemplo.
Além disso, em muitos
casos, informações além dos limites do próprio texto são necessárias. Observe o
seguinte poema de Vinícius de Morais:
Sombra e luz
I
Dança Deus!
Sacudindo o mundo
Desfigurando estrelas
Afogando o mundo
Na cinza dos céus
Sapateia, Deus
Negro na noite
Semeando brasas
No túmulo de Orfeu.
Sacudindo o mundo
Desfigurando estrelas
Afogando o mundo
Na cinza dos céus
Sapateia, Deus
Negro na noite
Semeando brasas
No túmulo de Orfeu.
Dança, Deus! dança
Dança de horror
Que a faca que corta
Dá talho sem dor.
A dama Negra
A Rainha Euterpe
A Torre de Magdalen
E o Rio Jordão
Quebraram muros
Beberam absinto
Vomitaram bile
No meu coração.
Dança de horror
Que a faca que corta
Dá talho sem dor.
A dama Negra
A Rainha Euterpe
A Torre de Magdalen
E o Rio Jordão
Quebraram muros
Beberam absinto
Vomitaram bile
No meu coração.
E um gato e um soneto
No túmulo preto
E uma espada nua
No meio da rua
E um bezerro de ouro
Na boca do lobo
E um bruto alifante
No baile da Corte
Naquele cantinho
Cocô de ratinho
Naquele cantão
Cocô de ratão.
No túmulo preto
E uma espada nua
No meio da rua
E um bezerro de ouro
Na boca do lobo
E um bruto alifante
No baile da Corte
Naquele cantinho
Cocô de ratinho
Naquele cantão
Cocô de ratão.
Violino moço fino
- Quem se rir há de apanhar.
- Quem se rir há de apanhar.
Violão moço vadio
- Não sei quem apanhará.
- Não sei quem apanhará.
II
Munevada glimou vestassudente.
Desfazendo-se em lágrimas azuis
Em mistérios nascia a madrugada
E o vampiro Nosferatu
Descia o rio
Fazendo poemas
Dizendo blasfêmias
Soltando morcegos
Bebendo hidromel
E se desencantava, minha mãe!
Em mistérios nascia a madrugada
E o vampiro Nosferatu
Descia o rio
Fazendo poemas
Dizendo blasfêmias
Soltando morcegos
Bebendo hidromel
E se desencantava, minha mãe!
Ficava a rua
Ficava a praia
No fim da praia
Ficava Maria
No meio de Maria
Ficava uma rosa
Cobrindo a rosa
Uma bandeira
Com duas tíbias
E uma caveira.
Ficava a praia
No fim da praia
Ficava Maria
No meio de Maria
Ficava uma rosa
Cobrindo a rosa
Uma bandeira
Com duas tíbias
E uma caveira.
Mas não era o que queria
Que era mesmo o que eu queria?
"Eu queria uma casinha
Com varanda para o mar
Onde brincasse a andorinha
E onde chegasse o luar
Com vinhas nessa varanda
E vacas na vacaria
Com vinho verde e vianda
Que nem Carlito queria."
Que era mesmo o que eu queria?
"Eu queria uma casinha
Com varanda para o mar
Onde brincasse a andorinha
E onde chegasse o luar
Com vinhas nessa varanda
E vacas na vacaria
Com vinho verde e vianda
Que nem Carlito queria."
Nunca mais, nunca mais!
As luzes já se apagavam
Os mortos mortos de frio
Se enrolavam nos sudários
Fechavam a tampa da cova
Batendo cinco pancadas.
As luzes já se apagavam
Os mortos mortos de frio
Se enrolavam nos sudários
Fechavam a tampa da cova
Batendo cinco pancadas.
Que fazer senão morrer?
III
Pela estrada plana, toc-toc-toc
As lágrimas corriam.
As primeiras mulheres
Saíam toc-toc na manhã
O mundo despertava! em cada porta
Uma esposa batia toc-toc
E os homens caminhavam na manhã.
Logo se acenderão as forjas
Fumarão as chaminés
Se caldeará o aço da carne
Em breve os ferreiros toc-toc
Martelarão o próprio sexo
E os santos marceneiros roc-roc
Mandarão berços para Belém.
Ouve a cantiga dos navios
Convergindo dos temporais para os portos
Ouve o mar
Rugindo em cóleras de espuma
Have mercy on me O Lord
Send me Isaias
I neede a poet
To sing me ashore.
As lágrimas corriam.
As primeiras mulheres
Saíam toc-toc na manhã
O mundo despertava! em cada porta
Uma esposa batia toc-toc
E os homens caminhavam na manhã.
Logo se acenderão as forjas
Fumarão as chaminés
Se caldeará o aço da carne
Em breve os ferreiros toc-toc
Martelarão o próprio sexo
E os santos marceneiros roc-roc
Mandarão berços para Belém.
Ouve a cantiga dos navios
Convergindo dos temporais para os portos
Ouve o mar
Rugindo em cóleras de espuma
Have mercy on me O Lord
Send me Isaias
I neede a poet
To sing me ashore.
Minha luz ficou aberta
Minha cama ficou feita
Minha alma ficou deserta
Minha carne insatisfeita.
Minha cama ficou feita
Minha alma ficou deserta
Minha carne insatisfeita.
Não é o foco aqui a
interpretação do poema, mas poderemos verificar que alguns versos pedem um
conhecimento que o contexto imediato não nos oferece. Assim, no verso E um bruto alifante, a palavra alifante
não é muito comum aos nossos ouvidos, e o que dizer do verso Munevada glissou vestassudente? Nenhum
esforço de inferência local pelo contexto do poema poderá nos indicar o sentido
das palavras empregadas pelo poeta nesses casos. Pode significar qualquer coisa
e apenas o conhecimento do vocabulário poderá auxiliar o leitor. Outros versos
vão exigir um conhecimento de outro idioma, o inglês; o conhecimento de mundo
será ainda necessário para compreender a citação de personagens, locais, e
mesmo referências a outros textos, em vários outros pontos do poema.
Observe agora a seguinte
situação: um casal de classe média está em casa, é domingo pela manhã e o
marido está sentado no sofá assistindo à corrida de Fórmula 1. A esposa, cansada dos trabalhos domésticos, gostaria de
almoçar fora, mas não sabe como pedir ao marido. Ela passa na frente da tevê
pra lá e pra cá, o marido se vira, desviando a cabeça para poder ver a corrida.
Ela se senta e suspira:
- Ai, amor, estou com uma
preguiiiiiiiiiiiça, hoje!!
Ele olha de lado, levanta
a sobrancelha e responde:
- Ai, amor, sabe que eu
também???
A esposa se levanta
cabisbaixa e, lentamente, dirige-se para a cozinha.
Nessa
situação, vemos que o marido inferenciou o implícito da fala da esposa através
do enunciado “estou com uma preguiça, hoje”. E, da mesma forma, por pista
semelhante, a esposa descobriu o implícito na fala do marido. Ambos
expressaram-se textualmente pelo mesmo enunciado, mas cada um intencionava um
efeito de sentido diferente no outro. A esposa dizia, provavelmente: Estou cansada, não quero cozinhar, vamos
almoçar fora! e o marido, Não amole, daqui eu não saio!
Nas situações de sala de aula, de exploração de textos e
atividades de leitura, o trabalho com processos inferenciais estimula no aluno
o desenvolvimento do raciocínio lógico e traz à tona, também, um arsenal de
conhecimentos prévios que auxiliam no desvendamento dos segredos do texto, rumo
à compreensão. Nas narrativas de enigma, por exemplo, verificamos que o leitor
tenta, por mil inferências, simples ou complexas, locais ou globais, descobrir
a autoria de um delito ou crime. E, como diziam nossos avós, para bom
entendedor, meia palavra basta!!
+ Referência para inferência:
ROJO, Roxane. Letramento e capacidades de
leitura para a cidadania. Mimeo, 2004.
TRAVAGLIA, Ingedore & KOCH, Luiz Carlos.
A coerência textual. São Paulo: Contexto, 2004.
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