Numa das muitas histórias
sobre grupos de leitura em regiões em conflito reunidas em A arte de ler
(Editora 34, tradução de Arthur Bueno e Camila Boldrini), a antropóloga
francesa Michèle Petit conta o caso dos bibliotecários da Comuna 13, um
conjunto de bairros pobres na periferia de Medellín. No fogo cruzado entre
guerrilheiros das Farc e paramilitares colombianos, a biblioteca se transformou
em ponto de encontro (e, muitas vezes, em abrigo) para jovens da vizinhança,
que encontravam nas atividades promovidas pelos funcionários e nos livros
disponíveis nas estantes um refúgio momentâneo para a brutalidade da rotina.
A história pode sugerir uma
visão um tanto romântica da cultura como antídoto para a barbárie (impressão
reforçada pelo subtítulo do livro, “Ou como resistir à adversidade”), mas
Michèle Petit argumenta, em entrevista ao jornal O Globo, que o trabalho de
pessoas como os bibliotecários de Medellín nada tem de ingênuo: “Eles sabem que
a literatura não vai reparar as violências ou as desigualdades do mundo, mas
observam que ela oferece um apoio notável para colocar o pensamento em ação,
para provocar o autoquestionamento, suscitar um desejo, uma busca por outra
coisa”, diz ela.
A arte de ler relata
experiências desenvolvidas por mediadores de leitura em “espaços em crise” –
locais afetados por confrontos armados, catástrofes naturais, pobreza e
migrações forçadas – em diversas regiões, mas, sobretudo na América Latina
(inclusive no Brasil). Nessas situações, sugere a autora, mais importante que a
interpretação do texto é o encontro ao redor do livro: a leitura funciona como
um catalisador para discussões em grupo sobre questões (pessoais ou coletivas)
despertadas pelas obras.
Autora de Os jovens e a
leitura (também publicado pela Editora 34), no qual reflete sobre os desafios
da tão debatida “formação de leitores”, Michèle critica nesta entrevista a
forma como o tema costuma ser abordado (“Certos discursos de glorificação da
leitura dão vontade de jogar videogame!”, brinca) e defende que as situações
extremas relatadas em A arte de ler podem inspirar novas abordagens para a
difusão da leitura.
A arte de ler fala de experiências de leitura em locais que a senhora
chama de espaços em crise”, sobretudo na América Latina. Por que escolheu esses
lugares e que tipo de atividade encontrou neles?
Há muito tempo observa-se que
a leitura ajuda a resistir às adversidades, mesmo nos contextos mais terríveis.
Mas a maior parte daqueles que deram testemunho disso estavam imersos desde a
infância na cultura escrita. As experiências que me interessaram na América
Latina reúnem crianças, adolescentes ou adultos com pouca escolaridade, vindos
de famílias pobres, que cresceram longe dos livros. Por exemplo: na Colômbia,
jovens saídos da guerrilha ou de grupos paramilitares, toxicômanos, soldados
feridos, populações desalojadas; na Argentina, mães de crianças pequenas em
situação de extrema pobreza, jovens que sofreram abusos ou vítimas de
catástrofes naturais. Essas experiências literárias compartilhadas se desenrolam
em espaços de liberdade, sem registros escritos nem controle de presença, sem
preocupação com rendimento escolar imediato nem resultados em termos
quantitativos. O dispositivo é aparentemente muito simples: um mediador propõe
suportes escritos a pessoas que não estão acostumadas a eles, lê alguns em voz
alta, e então um relato ou um debate surgem entre os participantes. Os textos
lidos despertam seus pensamentos e palavras. Não porque esses textos evoquem situações próximas das que eles
viveram. Aqueles que têm um efeito “reparador” são em geral até muito
surpreendentes. Através de um conto ou poema qualquer escrito do outro lado do
mundo, eles leem páginas dolorosas de sua vida de forma indireta, falam de sua
própria história de outra maneira, e conseguem compartilhá-la.
"Há muito tempo
observa-se que a leitura ajuda a resistir às adversidades, mesmo nos contextos
mais terríveis. Mas a maior parte daqueles que deram testemunho disso estavam
imersos desde a infância na cultura escrita."
Quais são as principais diferenças entre a leitura individual e a
experiência coletiva que é a leitura mediada?
Há séculos a leitura é
associada à imagem de um leitor – e mais ainda, talvez, de uma leitora –
solitário e silencioso, numa intimidade autossuficiente. Isso pode contribuir
para afastar da leitura pessoas que vivem em meios onde se dá preferência a
atividades coletivas e onde o ato de se colocar à parte do grupo é visto como
rude. As experiências de leitura compartilhada, ao contrário, podem facilitar a
apropriação dos textos, desde que eles não sejam percebidos como algo imposto.
O interessante nos casos que estudei é que eles se desenrolam num quadro
coletivo, mas onde cada pessoa é objeto de atenção singular.
Cada um é ouvido com atenção,
disponibilidade e confiança em sua capacidade e criatividade. Os ritmos ou as
culturas próprias a uns e a outros são respeitados, suas palavras recebidas e
valorizadas. Esses jovens são frequentemente solicitados, e formados, para
tornarem-se também mediadores de leitura para outros, como faz, por exemplo, o
grupo A Cor da Letra, no Brasil. É uma forma coletiva, mas que dá lugar a vozes
plurais, a uma escuta mútua, a singularidades. A leitura solitária não se opõe
a esses pequenos grupos livremente constituídos onde o tempo de leitura e
discussão é repartido e onde cada um se retira em seguida para sua casa,
levando consigo fragmentos de páginas lidas e palavras compartilhadas. Tanto
uma quanto outra desenham espaços de liberdade e, às vezes, de resistência.
Segundo o livro, os mediadores
veem seu trabalho como uma atividade “cultural, educativa e, em certos casos,
política”. Qual seria a dimensão política da difusão da leitura?
Aqueles cujo trabalho
acompanhei acreditam trabalhar por algo muito maior, que é de ordem cultural,
poética, educativa e, em alguns aspectos, política. Eles não são ingênuos,
sabem que a literatura não vai reparar as violências ou as desigualdades
sociais, mas observam que ela oferece um apoio notável para colocar o
pensamento em ação, para provocar o autoquestionamento, suscitar um desejo, uma
busca por outra coisa. E, numa época em que os partidos políticos não conseguem
fazer isso, a leitura compartilhada aparece como um meio de mobilizar as
pessoas, de driblar a repressão à palavra e produzir experiências estéticas
transformadoras (além de favorecer a aproximação da cultura escrita). Esses
professores, bibliotecários, escritores, psicólogos, ou simples cidadãos, se
engajam numa ampla partilha do texto, mas também na construção de uma sociedade
mais democrática e solidária.
"As
experiências de leitura compartilhada [...] podem facilitar a apropriação dos
textos, desde que eles não sejam percebidos como algo imposto."
Alguns argumentos a favor da leitura de obras literárias fazem com que
ela pareça mais uma obrigação ou uma necessidade do que um prazer. Como fazer
esse trabalho de difusão e, ao mesmo tempo, preservar a dimensão lúdica da
leitura?
Certos discursos de
glorificação da leitura dão vontade de jogar videogame! E os discursos jamais fizeram alguém ler, tampouco
as campanhas de massificação para “criar” ou “formar” leitores. Seja pai ou professor, quem diz que uma criança tem que
ler (ou pior: que tem que gostar de ler!) faz da leitura um fardo ao qual ela
precisa se submeter para satisfazer os adultos. O
impasse está garantido se quem diz que “ler é um prazer” não tem nenhum gosto
pela leitura: a criança vai sentir que a pessoa não está sendo sincera. O belo
discurso transmite o contrário do que pretendia. Afinal, por que alguém se
torna leitor? Na maior parte do tempo, porque viu a mãe ou o pai mergulhado nos
livros quando era pequeno e se perguntou que segredos eles podiam desvendar
ali. Ou porque eles leram histórias em voz alta, dando à criança liberdade de
ir e vir, sem conferir constantemente se ela tinha entendido bem. Ou ainda
porque as obras que havia em casa eram assunto de conversas intrigantes ou
divertidas. Em certas famílias, as chances de ter essas experiências vêm
de nascença ou quase. Em outras, os livros evocam para os pais nada além de
lembranças de humilhação e tédio. Junte-se a isso as dificuldades econômicas e
a distância dos locais onde se podem encontrar suportes escritos. Nessas
famílias, se as crianças ou adultos acabam lendo, e até vivendo a leitura com alegria,
é graças a um encontro, ao acompanhamento caloroso de um mediador (professor,
bibliotecário, amigo, assistente social...) que tem gosto por livros e sabe
tornar esses objetos desejáveis, o que é uma arte. Essa arte passa por um
trabalho sobre si mesmo, sobre sua própria relação com os livros, para que a
criança e o adolescente não digam: “Mas o que ele quer, esse aí, por que ele
quer me fazer ler?”. É esta arte que está no coração das experiências que
estudei e no coração do meu livro. Ela tem que ser apoiada, encorajada, e as
iniciativas desses mediadores devem ser difundidas e multiplicadas, por uma
vontade política, para que seja dada a todos, onde quer que vivam, uma chance
de encontrar ecos de sua experiência humana, de descobrir outros mundos e de se
apropriar realmente dos textos – o que é completamente diferente de aprender a
ler.
Revista Na Ponta do Lápis,Ano
VII,Número 16,Março de 2011
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